I - INTRÓITO
O crime nasceu no primeiro momento da humanidade. Com o homem, surgiu o delito. Os filhos de Adão foram autor e vítima do primeiro homicídio - Caim matou Abel. Motivo: a inveja, mal secreto, o pior dos pecados capitais. E Deus, antes de punir Caim, assegurou-lhe o direito de defesa (Gênesis, 4, 9 – 10).
Assim, naquela primeira tragédia humana, inaugurou-se o direito de defesa.
Sêneca, três séculos antes de Cristo, já afirmava que ninguém pode ser julgado sem antes ser ouvido.
Todavia, nem sempre se observou este direito natural. A História registra um rol de estúpidas condenações fundadas na vontade absoluta dos que encarnavam o Poder. Dentre milhares, basta que se recordem dos julgamentos de Sócrates, de Jesus Cristo, de São Sebastião, de Luiz XVI, e dos dolorosos tempos dos “Juízos de Deus” (ordálias), da Inquisição e das execuções pós-revoluções.
Sem o direito de defesa, qualquer julgamento é temerário. Sem este sacrossanto e irrecusável direito não há ordem jurídica, não há vida civilizada, não há segurança, não há paz.
A magnitude do direito de defesa, como expressão marcante de franquia democrática, encontra-se excelentemente conceituada em lição de José Frederico Marques: “O direito de defesa, em sua significação mais ampla, está latente em todos os preceitos emanados do Estado, como substratum da ordem legal, por ser o fundamento primário da segurança jurídica da vida social organizada (...). É essencial à defesa plena que não se rebaixe o indiciado à condição inferior de simples material de investigações” (in “Estudos de Direito Processual Penal”, Forense, Rio, 1960, pág. 301).
II – O DIREITO DE DEFESA EM NOSSO SISTEMA
A Constituição de 1988, inspirada e esculpida numa fase histórica de reabertura da vida democrática, quando se expeliam as amarras de um longo tempo de restrições ao uso dos instrumentos do Estado de Direito, pacto político que se constituiu, sem dúvida, no mais rico monumento representativo do humanismo no Planeta.
Efetivamente, nenhuma outra Carta Política incorporou no seu texto tantas virtudes dirigidas à dignificação do ser humano. No seu portal de entrada, ao fincar os cinco fundamentos da República, foram colocados em pedestal a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Esses dois valores inspiraram essencialmente os cânones que deram corpo ao rol de franquias democráticas definidas no seu artigo quinto, com destaque para o sacrossanto direito de defesa, que recebeu a seguinte fórmula:“Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (inciso LV).E na instituição do júri, foi assegurada “a plenitude de defesa” (inciso XXXVIII, a).
III – O DIREITO DE DEFESA E SUA EFETIVIDADE. GARANTIAS CONEXAS
São preceitos afirmativos de uma mesma idéia, a proteção e a defesa da pessoa em face de uma acusação.
É interessante que se faça uma breve reflexão sobre cada uma das mencionadas garantias e sua interação com o princípio básico, objeto deste estudo.
a) DIREITO DE PETIÇÃO
“São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”(XXXIV).O direito de petição e o direito de obtenção de certidões são franquias que tem por escopo objetivamente o exercício do direito de defesa, impondo-se contra o arbítrio da burocracia.
Sem o direito de petição e a garantia de obtenção de certidões, a defesa do indivíduo seria capenga, torta e incipiente, pois os processos acusatórios, judiciais ou administrativos, seriam monstros noturnos perante os quais o homem sucumbiria assombrado, mergulhado no angustiante poço da incerteza, reduzido ao mínimo, em profundo estado de medo e de terror.
b) VEDAÇÃO DE TRIBUNAL DE EXCEÇÃO
“Não haverá juízo ou tribunal de exceção” (XXXVII).
A vedação de juízo ou tribunal de exceção é uma das grandes conquistas da democracia contemporânea. Tal princípio veio proscrever do mundo civilizado o terror dos julgamentos políticos e sumários que borraram tantas páginas da história da humanidade.
Na verdade, sem essa garantia, o direito de defesa seria expressão vazia, mera figura de retórica, pois no juízo ou tribunal de exceção a palavra do réu tem a força da sombra sobre a escuridão, que em nada altera a imagem das trevas.
c) DEVIDO PROCESSO LEGAL
“Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (LIV).
A observância do devido processo legal tem no preceito by the law of the land do direito inglês, transposto para a cláusula by due process of law do direito americano, a sua origem.
Somente a atual Constituição inscreveu, de forma lapidar e abrangente, a cláusula de imperativa observância do devido processo legal, preceito de inexcedível magnitude, barreira de proteção contra o arbítrio judicial.
A preciosa cláusula do due process of law é, sem dúvida, coluna mestra de sustentação do grande monumento à cidadania corporificado no direito de defesa. Ela constitui, por si só, poderoso instrumento de freio da ação do Estado, abrigo inexpugnável do homem comum, que é titular de direitos irrenunciáveis e inalienáveis, sem a qual o direito de defesa seria asfixiado, desprovido de efetividade.
d) PROVAS ILÍCITAS
“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (LVI).
A vedação de uso, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos é outra norma integrativa do princípio da ampla defesa. O tema, não previsto na Cartas anteriores, é valiosa conquista incorporada ao nosso direito constitucional em norma expressa, incrustada no capítulo das cláusulas pétreas, o que a torna imutável e obriga o exegeta (o Juiz) a prestar-lhe todas as homenagens, expungindo da sua visão as imagens produzidas por frutos podres que contaminam a verdade substancial.
Qualquer prova não judicializada, porque não submetida ao crivo do contraditório, é considerada ilícita, imprestável para a formação de juízo de convencimento.
Inúmeros outros tipos de prova ilícita continuam presentes no dia a dia forense, tais como a prova emprestada (de outro processo), a escuta telefônica (realizada antes da autorização judicial), as buscas e apreensões em domicílio e local de trabalho (autorizadas por ato judicial subseqüente), a prova colhida por precatória (sem a prévia ciência do defensor do réu) e outros modelos viciados. Tudo isso são máculas que afrontam o princípio da ampla defesa. São frutos podres que contaminam toda a cesta.
Em repúdio ao uso da prova ilícita, adquire expressão nas melhores cabeças a doutrina dos “frutos da árvore envenenada” (fruits of the poisonous tree), boa herança da jurisprudência americana, que nega validade de prova derivada de outra prova, esta efetivamente ilícita.
e) PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (LVII)
A presunção de inocência entronizada na Carta vigente no altar das garantias constitucionais é, sem dúvida, uma das magnas conquistas que dignificam a nossa ordem jurídica. Desconhecida nas Cartas anteriores, é hoje pedra de toque do sistema processual penal e guarda harmonia com a regra matriz de respeito à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República. Originária do pensamento expresso no clássico brocardo latino in dubio pro reo, encontra-se gravado nos grandes diplomas jurídicos de direito internacional.
f) COMUNICAÇÃO DA PRISÃO À FAMÍLIA DO PRESO
“A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” (LXII).
No passado, não distante, as prisões, em regra, eram efetuadas nas altas horas da noite para não deixar rastros testemunhais. As pessoas simplesmente desapareciam, eram subtraídas do seu espaço familiar, laboral e social, para desespero dos que ficavam em casa. Em nome do Poder de Polícia, praticavam-se atrocidades contra pessoas, muitas vezes inocentes.
O preceito que obriga a comunicação da prisão de qualquer pessoa ao juiz e à sua família é imperativo do respeito à dignidade da pessoa humana e abre espaço para o pronto exercício do direito de defesa. providência consubstancia um grande passo na afirmação e na efetividade do direito de defesa.
Na verdade, a mera comunicação dos motivos da prisão por nota de culpa entregue ao réu ou por oficio ao Juiz não significa real possibilidade de combate a uma prisão ilegal ou a uma injusta acusação. Encarcerado, sem contato com o mundo exterior, de nada valerá para o réu a posse da nota de culpa. E a comunicação ao Juiz, na prática, não importará em imediata correção da eventual ilegalidade, considerada a nossa arraigada cultura do ne procedat judex ex offício. Daí a grande importância da cláusula de obrigatória ciência da prisão “à família do preso ou à pessoa por ele indicada”, abrindo-se, com tal providência, espaço para o exercício pleno do direito de defesa.
g) DIREITO AO SILÊNCIO
“O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (LXIII).
Dentre os direitos do preso inseridos na Carta Política de 1988 merece realce o direito ao silêncio, consubstancial ao direito de defesa, peças sincronizadas de um mesmo mecanismo. Ao proclamar em seu art. 5º, LXVII, que o preso tem o direito de permanecer calado, o nosso Estatuto Fundamental, de modo inédito, já que as Cartas anteriores não continham tal preceito, entra em sintonia com toda a ordem constitucional do Mundo Ocidental, capitaneada pelos Estados Unidos desde a edição da Quinta Emenda.
h) IDENTIFICAÇÃO DO RESPONSÁVEL PELA PRISÃO
“O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial” (LIV)
Uma outra garantia constitucional assegurada ao preso que se situa no campo de vitalização do direito de defesa é a identificação dos responsáveis por sua prisão e por seu interrogatório policial.
A exigência em destaque, além de significar providência integrativa do efetivo exercício do direito de defesa, evitando abusos policiais no ato de prisão ou durante o interrogatório na fase inquisitiva, é também de alta importância preventiva para que ao preso seja assegurado o respeito à sua integridade física e moral.
i) A DEFESA DOS POBRES
''O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (LXXIV).
Por último, impõe-se o registro da garantia de assistência dos necessitados em juízo, certamente a mais significativa nesse espectro de franquias que confere efetividade ao direito de defesa.
O constituinte de 1988 conferiu ao tema alcance maior, prometendo “assistência jurídica integral e gratuita” aos insuficientes de recursos (art. 5º,LXXIV), instituindo a Defensoria Pública, qualificada como “essencial à função jurisdicional do Estado”, e programando a sua organização (arts. 134 e 135).
IV - O DIREITO DE DEFESA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
a) O DIREITO DE DEFESA NO INQUÉRITO POLICIAL
Consolidou-se entre nós o dúbio conceito de que o inquérito policial é um procedimento de natureza informativa, de caráter inquisitivo e, por isso, no seu curso não há a exigência do contraditório. Nada mais temerário e mais agressivo ao direito de defesa do que essa míope concepção. Tem-se, com essa absurda visão, uma autêntica privatização de uma atividade pública, situada no puro campo do arbítrio, sem efetivo controle, susceptível de produzir provas definitivas, como o corpo de delito, documentos, perícias, sempre utilizados para embasar sentença condenatória, tudo produzido sem a intervenção da defesa do réu.
Impõe-se frisar, ademais, que no curso do inquérito policial podem ser ordenadas buscas e apreensões (CPP, arts. 240/249), seqüestro de bens (CPP, arts. 125/132), quebra do direito à intimidade pela investigação da vida pregressa (CPP, art. 6º, IX), prisão temporária (Lei n.º 7.960/89), prisão preventiva (CPP, art. 312), ordem de incomunicabilidade do indiciado (CPP, art. 21), atos estes sempre realizados de surpresa, sem possibilidade de exercício do direito de defesa.
b) O DIREITO DE DEFESA NO CURSO DA AÇÃO PENAL
É no curso da ação que há de se assegurar, em toda a sua plenitude, o direito de defesa.
O ordenamento infraconstitucional codificado apresenta alguns pontos que merecem reflexão. A regra do art. 396 do CPP, ao escrever “apresentada ou não a defesa”, autoriza a consolidação da tese de que a defesa prévia é uma faculdade e não uma providência indispensável à formação do processo. Este é um caminho de pouca luz. Sem defesa prévia, imperativa para a composição do contraditório, ter-se-á uma instrução criminal coxa, capenga, manca, caminho certo para condenações injustas.
A mesma crítica deve ser feita aos arts. 499 a 502, do CPP. O prazo de 24 horas para a defesa requerer diligências no término da instrução, o qual tem curso em cartório independentemente de intimação, resulta imprestável e implica, na prática, cerceamento de defesa.
Também merece repulsa a idéia consagrada na alta jurisprudência de que a falta de alegações finais não acarreta nulidade. São posições embasadas em regras provectas que, verdadeiramente, não sobrevivem ao lado da sacrossanta garantia da ampla defesa.
c) O DIREITO DE DEFESA NA FASE RECURSAL
Também não guardam harmonia com o princípio constitucional em estudo diversas outras regras do CPP que a jurisprudência dos Tribunais insiste em mantê-las vivas. Dentre elas, merecem destaque o art. 594, que não admite a apelação do condenado reincidente e sem bons antecedentes sem prévio recolhimento à prisão, e o art. 595, que considera deserta a apelação se o réu empreende fuga após interposto o recurso. São disposições que causam grave ofensa ao pleno exercício do direito de defesa.
Na moldura legal disposta nos dispositivos mencionados não se tem como efetivamente assegurado o exercício da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Sem defesa prévia formulada com pleno rebate à peça de acusação – e nesta fase é relevante a interação da autodefesa (versão do réu) com a defesa técnica –, sem a presença participativa do advogado do réu no sumário, sem a real oportunidade de requerer diligências, sem o debate longe e exaustivo da prova em confronto com a acusação materializado na peça de razões finais, sem a submissão da sentença condenatória ao segundo grau de jurisdição, sem tão imperativas providências não há defesa plena. Ter-se-á, no máximo, uma defesa formal, apenas para atrair a incidência da Súmula 523, do Excelso Pretório (“No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.”) no que ela tem de prejudicial ao réu.
Enquanto tiverem vigor diversas disposições retrógradas do velho Código de Processo Penal, nascido em tempos em que imperavam princípios sumamente diferentes dos que iluminam os dias atuais, estaremos em absoluto descompasso com a nossa era constitucional, em especial no concernente ao direito de defesa e a outras garantias que lhe são imbricadas.